domingo, 3 de novembro de 2019

Vox clamantis in deserto. Sinais menosprezados?









                                                            “ Vox clamantis in deserto”.
                                                              Sinais menosprezados?



    
A realidade, em sua rápida e plural diversificação de interesses, ocupa e ao mesmo distrai a capacidade humana em focar o essencial, o invisível. Há sempre tantos eventos diários com prazos, fotos e fatos que o pano de fundo do teatro bem como a imagem do caleidoscópio em si é menosprezada. No entanto, tudo que vai acontecendo decorre de ideais, de causas a longo tempo existentes, que acabam deixadas de lado. Neste sentido, há muitos sinais que estão sendo dados e operam livremente, desde há muito tempo na realidade, originando causas que se misturam as consequências, acabando por montar uma complexidade difícil de cativar a atenção das pessoas que deveriam melhor considerá-las para tomar atitudes práticas.
Não é do mundo quadradinho das pessoas da produção, já condicionadas e estreitadas a seus currais de trabalho, onde a liberdade é formatada pelos ditames do salário e do emprego, que estão vindo os sinais, mas sim da camada ainda livre, a juventude, cujas ações e reações, de há muito, vem avisando de mudanças no pensamento e que expressam o olhar o mundo e a vida diferentemente dos tradicionais ensinamentos de pai para filho, muito embora, a vida tenha fases bem definidas e a idade avance sobre todos, o que vem sendo desconsiderado visivelmente. 
Ao longo das últimas 5 décadas, um conjunto de filosofias deitou-se sobre a civilização e ao serem utilizadas por forças da produção e da comercialização, favoreceram mudanças do pensar e do atuar da juventude, colocando contra a parede os padrões normais da estrutura para o viver, conviver e sobreviver. Agora tendo recebido o avanço e tendo sido turbinada pela tecnologia e seus inúmeros aparelhos de comunicação, os novos pensamentos e uma nova concepção de vida é amplamente divulgada e marca atualmente o cisma do jovem em relação ao comportamento até então comum e de preparo, nos moldes como costumava ser formatado para a participação no mundo do comércio e da indústria do modo que os adultos vinham  conduzindo.
O jovem de hoje não é mais o elemento que o sistema clássico projetou. Ao longo do percurso, embora os múltiplos condicionamentos tentados, o produto está saindo da forma de modo diverso do esperado e a juventude tem emitido sinais bem mais contundentes para a sociedade. Mais uma vez, a sociedade e seus olheiros falham em localizar tais sinais ou quando o fazem falham em considerá-los como mutantes e capazes de mudar o “establishment”.
A mesma atitude foi a que levou a imprensa, a mídia e toda a sociedade adulta a não enxergar a chegada dos abalos sociais de 1968 no mundo, revoltas de comportamento, fruto das décadas anteriores, sem envolvimento com questões econômicas. Na época a reação foi rápida, a indústria e o comércio aproveitaram para aumentar a produção e as vendas utilizando o espírito de mudança e de revolta, investindo na moda e música; a bandidagem estruturou o mercado da droga, como meio de fuga para os jovens insatisfeitos. O mundo se acomodou e se ajustou como se fosse moda passageira. Todavia, a semente do movimento continuou e hoje já está arraigada no pensamento da juventude, de um modo muito mais consolidado e duradouro. Não é só a consciência crescente quanto à alimentação (sal, açúcar, carne, refrigerantes etc.), saúde, educação clima, meio ambiente que revela e se faz de porta-bandeira  de um novo entendimento sobre o mundo e o modo de viver, mas também a intolerância, a insatisfação quanto a visão de futuro, quanto as  incoerências do aparelhamento da sociedade em relação aos necessários  preparos para os novos meios de vida pretendidos, quanto aos sistemas e meios de governo, aos sistemas políticos, que visivelmente pouco resultado têm apresentado para a sociedade e seu futuro. Pode-se até questionar se muitos dos políticos e autoridades atuais que estão na cadeia por corrupção não foram jovens rebeldes dos anos 50 e 60, que por ideologia contrária optaram por encher as burras de dinheiro para seu próprio umbigo egoísta, deixando os interesses do país à míngua; uma espécie de sabotagem ao sistema, com visíveis proveitos próprios e um abraço aos demais. Até que ponto não são legítima expressão dos defeitos da sociedade que os gerou?  Há muitos modos de expressar revolta contra o “establisment”.
Fato é que a juventude de hoje, unida como nunca no mundo, está, ao seu modo e com grande parcela de inconsciência, preparando-se para rebelar-se contra tudo e todos de um modo mais agressivo. O jovem humilde, temeroso e reverente quanto aos adultos, ricos ou pobres, bem como aos demais deixou de existir. Uma pedra jogada contra a polícia ou contra uma loja,tem razões muitas vezes distintas e um endereço diverso das que a mídia lhe quer emprestar.  Nem o atirador da pedra sabe muito bem porque jogou, mas o ato cabe na ideologia, na visão de quem vê a vidraça quebrada e se coloca como apoiador.  É esta insatisfação anônima, sem clareza, sem muita coerência que está sufocada e faz o barulho no silêncio das pessoas. Como todo processo, há um começo, meio e fim, basta o “start”, que pode ser o mais insignificante em termos econômicos, mas que pode dar vazão a uma descontrolada manifestação de resultados que representam um fato importante para a ideologia em formação e avança contra a cultura, o poder, o “establisment” que vem resistindo.  
E diante de fatos, que se repetem aqui e ali no mundo, a mídia, sempre focada nos assuntos do dia a dia, mormente na política, preocupada como o ”Poder”,  perde a visão geral e é sempre surpreendida perante  eventos populares, para os quais se preocupa em por bandeiras de acordo com sua visão e interesse.
As mensagens são, todavia, cada vez mais recorrentes de que as futuras gerações, que ocuparão o mundo em termos de decisão e controle, e não desejam seguir os mesmos modelos e padrões, embora a racionalidade produtiva siga passos que dificilmente são de grande variação. Produzir-vender –consumir é um triângulo de duração eterna e condiciona o mundo e mantém a paz ou faz a guerra. Se há mudanças neste triângulo de existência, é o comportamento humano que interfere e faz mudanças de tempos em tempos, conforme as forças manipuladoras existentes a cada época com seus meios de operação. 
Há décadas, o marketing de propaganda e a mídia mundial tem espalhado mensagens impregnadas de valores e princípios, muitos deles negativos, que atingem a juventude, fazendo assim uma mentalidade diferente que redunda hoje em não seguir modelos, não adotar padrões e não respeitar autoridade e instituições; isto vem sendo pregado sistematicamente em dissintonia com o comportamento exigido pelos órgãos de controle e governo. Ao par desta realidade, o mundo informatizado vem criando novo modo de ser e dotando  os jovens de hábitos e necessidades que antes não existiam. Nasce uma nova lógica, sem paradigmas.
A juventude das últimas décadas tem e foi levada à oportunidade existencial única de criar seu próprio modo de pensar, desconectada dos pais e do “establisment”. Será que quando ocupantes de cargos públicos etc, não refletem tal sentimento e ideologia, priorizando o umbigo em detrimento dos interesses do país. Não seria uma repetição do já visto em termos de descompromisso com a estrutura formal da produção e governo. De certo modo uma nova versão da anticultura.  Mesmo em países orientais mais conservadores e onde a juventude recebe educação de qualidade, os jovens  mostram-se diferentes e indiferentes e possuem nas mãos instrumentos para mostrar a qualquer instante sua força de unidade e ação. Já nos países menos favorecidos, meio à crescente falta de Educação de qualidade e problemas econômicos de difícil solução, o despreparo da juventude é visível e a ignorância impulsiona as forças contrárias ao respeito ao padrão tradicional usado pela democracia, para debate e discussão e demais instrumentos da sociedade formal para resolver seus problemas. Surge com muito mais manchas de tinta de impaciência, o jovem ansioso, frio, calculista, pragmático e intolerante, fisiológico, pronto para resolver tudo no ímpeto das atitudes violentas.
E com a renovação das gerações, os padrões antigos vão cedendo e sendo enfraquecidos sob a justificativa de serem resquícios do autoritarismo, muito embora a atitude que se observa é de um autoritarismo jovem renovado e muito mais violento, eis que nascido da contrariedade ao ego muito mais forte . O caldo desta vez não será resultante da adoção de mensagens de desobediência civil, de beatniks, de filosofias orientais de amor e paz, de músicas de Beatles e Rolling Stones, de moda descontraída; os sinais apontam para algo mais contundente, pois os jovens estão mais exigentes, e como a sociedade demora ou não os satisfaz, há mais focos de ansiedade, contrariedade e insatisfação. O estouro dependerá da força do estímulo que for causado a nível pessoal ou coletivo.  Enquanto a juventude fica contida, a revolta fica no silêncio ensurdecedor e nos atos pequenos da vida particular.      
Quem instigou o estabelecimento de maus valores e princípios através de meios subliminares nas décadas do pós–guerra, com a justificativa de necessidade de democratização e liberdade deveria monitorar os resultados e estar atento aos sinais que vem da manada. Mas não o faz, porque está sistematicamente focado no Poder e nas movimentações políticas. Por tal motivo, não antevê nada; nem a previsão do tempo com precisão. Se tem plena ciência do que está acontecendo, deixa solto e nada fala porque talvez ideologicamente lhe beneficiará. Quem está e sempre esteve por trás de tudo isto? Ou tudo isto foi se formando por si só? Tudo leva a crer que grupo de arquitetos criadores perdeu o controle de seus filhotes e capacidade de crítica, pelo que se surpreende a cada manifestação como qualquer um .
 Assim é que na década de 60, a mídia achava tudo bonito e entrava na onda, pois garantia o seu caixa gordo e o comércio. Ninguém deu muita atenção à chegada da droga no país, o começo com boletas de anfetaminas parecia algo divertido e para poucos e o que temos hoje? Ninguém viu as consequências do tabaco e álcool a longo prazo e no que deu isto?   Em 1971 não previram as colossais revoltas contra a Guerra do Vietnã; não previram a primavera árabe, iniciada por uma jovem e seu celular, do mesmo modo que são e foram incapazes de antecipar movimentos em vários países nos quais a juventude tem se mostrado mais revoltada e poderosa. Há uma crescente de manifestações populares jovens em todo o mundo, todavia ainda sufocadas pela polícia, a qual se mostra cada vez mais insuficiente. As simples pichações de muros e casas já mandavam mensagens de uma nova mentalidade e de tendências que não foram lidas. Será que pichações com “Vamos invadir tudo!” não queriam dizer nada. A questão é quando, como e onde as manifestações vão se tornar incontroláveis. Já se viu acontecer que a elevação de centavos em algum serviço público foi capaz de desencadear revoltas desproporcionais como ocorreu em 2013 a partir de São Paulo, num movimento que acordou as massas hipnotizadas e culminou com a queda de um regime inteiro anos após. 
Por hora, o que se observa é que os movimentos levam para a rua jovens revoltados com situações pessoais, uma revolução silenciosa que em parte só pode ser dissipada com o aumento da idade e as respostas positivas que a sociedade possa dar em termos de emprego e melhorias econômicas, mas a tendência é de revolta. A motivação é em grande maioria alheia à motivação política de esquerda ou direita, porque o jovem está pouco ligando para isto, já que sua cabeça está mais voltada a ver a realização no mundo de sua nova mentalidade, dos desejos e vontades que lhes incutiram, dos resultados dos valores e princípios que o construíram internamente e para os quais não conseguem identificar possibilidades nos padrões e modelos formais do chamado “sistema”. Considerando que a juventude foi estendida até os 30 anos e a entrada no mercado de trabalho postergada, temos um reforço no número de jovens potencialmente revoltosos para engrossar manifestações, as quais têm surgido com mais frequência, diante de eventos de contrariedade, promovidas contra seus sonhos e projetos de vida.
O fato é que as gerações de jovens que usufruirão do mundo são diferentes e possuem objetivos diferentes pelo que os modelos e padrões até agora vigentes passam a ser vistos por elas como incompetentes para o mundo idealizado. A renovação já está em andamento e veremos, por enquanto, crescentes reações à medida que o “Poder” não venha a atender os padrões e modelos dos jovens; haverá manifestações coletivas cada vez mais contundentes e de certo modo cínicas e ignorantes quando desprendidas da racionalidade mínima. Antes era: quanto menos Educação, mais manipulação; hoje e amanhã , quanto menos Educação, mais confusão.
Seja lá como for, em 20, 30 anos, as novas gerações estarão no comando com suas decisões e mentalidade. E esta que começou a ser montada no pós-guerra foi turbinada a partir dos anos 80 pela tecnologia virtual.  Nunca a juventude teve a seu dispor tantos elementos de mudança e união como atualmente. E aparentemente os meios de comunicação, analistas etc., não estão lendo o ruído do silêncio existente. Uma nova “generation gap” está em andamento e os políticos, a imprensa etc. não estão lendo os sinais porque continuam anestesiados e estão sempre cuidando de seus umbigos, esquecendo da gestação que está em curso. A imprensa e o governo ainda serão  tomados de surpresa por muitas reações populares.
O fato é que esta juventude é diferente em tempos diferentes. Produto de novos tempos, ela parece não ser filha de seus pais, mas produto de si mesma, com princípios e valores adquiridos do mundo virtual que a captou. Como em tudo, há o lado positivo e o negativo, mas a Educação formal continua falha e o papel da família não é o mesmo. Como em todas épocas, há desafios e nem tudo será caos e desastre, mas dependendo das particularidades de cada país, ainda veremos muito no campo da transição, pois a contrariedade é forte e persistente e a ignorância e a falta de esclarecimento são espoletas perigosas. 
No caldo em que isto se desenvolve, há uma diversidade muito grande de novas realidades, que se entrelaçam formando causas jamais vistas pela humanidade. De mais grave, repita-se que se identificam sinais de revolta pessoal, devido à inconsciência permeada por lampejos de consciência, quanto às impossibilidades existenciais de concretizar sonhos e projetos pessoais; demanda reprimida por chances e oportunidades; limitação educacional; benefícios e malefícios do contato,via informática, com países do primeiro mundo e o crescente sentimento de distanciamento, diferenças e atraso em quase tudo face ao processo histórico de evolução social; sensação de dependência presente e futura; contato com pensamentos e estágios mais avançados da humanidade, o que cria exigências e sonhos, que o país demorará a atender face o seu estágio atrasado de desenvolvimento; efeito de ter Paris na cabeça, para pensar, e o Brasil nos pés, para andar; recorrente  desconfiança quanto às autoridades e Justiça, com crescente desinteresse pela participação na política como meio democrático, contrastando com a ansiedade , agitação mental e expectativa por ações que o Brasil não irá dar na mesma intensidade desejada,o que é reflexo da ideia passada de esperar soluções de cima; desvio e distração do mundo real, protelando cada vez mais o enfrentamento da realidade; recusa de participar em subemprego e ambientes de trabalho sem dignidade;quem pode e tem preparo está deixando o país; falta de persistência; impaciência para percorrer carreiras profissionais de longo prazo; tendência a procurar dinheiro rápido; quem fica, recusa repetir padrões e modelos que aos poucos se revelam como ineficientes para fazer face ao futuro, o que leva à alienação e repugnância quanto aos assuntos da política e Governo, vistos como algo impuro e desonesto, e que fizeram o atraso e danos para o futuro; abandono do patrimonialismo; exposição ao negativismo, etc; nunca se pode esquecer a pressão econômica e as demandas reprimidas em cada jovem como fatores de motivação para o bom ou mal  uso dos meios de informática.  Certamente, o mais provável é que não haja um estímulo suficiente para criar uma convulsão generalizada de fundo, pelo que o país continuará no seu tranco rotineiro. O país sempre continuou como sempre, arrastando-se, perdendo oportunidades, energia; o progresso material que foi sendo alcançado nunca foi o que deveria ser. Com pensamento negativo, sempre haverá desarmonia e mediocridade; as consequências ficam diluídas pela inconsciência, derrotismo, falta de esclarecimento e pelo gigantismo territorial.    
Muitos são os aspectos da realidade que indicam que o jovem de hoje tem mais motivos e mais recursos para provocar mobilização em defesa de seus sonhos para o mundo. Uma juventude mais ansiosa, impaciente, intolerante com um alto de grau de autoritarismo recolhido, pode, a qualquer momento, sair às ruas atendendo a um chamado do “twitter” e logo forma-se uma multidão que vai desabafar,contra a polícia, mil razões pessoais e coletivas.
Começa-se a sentir no dia a dia os efeitos dos “mestres invisíveis”. Diante do arcabouço ideológico impingido ou não, surgiu uma nova mentalidade nos jovens e eles vão à luta para fazer a realidade de acordo com seus sonhos, sejam eles quais forem.
Em síntese, se o Governo se preocupa tanto com meios materiais, que passe a interpretar a nova mentalidade, pois ela forçará a mudança radical dos modos de produzir-vender e consumir, tudo de acordo com o novo modo de sentir-pensar e agir.  Antigas estruturas privadas ou públicas começam a se tornar ineficientes e nenhum poder conservador irá ter sucesso. Meios e modos da política já se revelam obsoletos e atiçam a raiva popular. Muitos são os sinais, poucos são os que estão identificando e interpretando as mensagens que estão vindo da juventude.  A falta de Educação formal de qualidade e o correto esclarecimento formam um caldo errado para a democracia e para os ímpetos de liberdade. Dependendo do evento, a selvageria é a expressão única de união possível.
Para muitos distraídos pela vida do dia a dia político e econômico, nada está ocorrendo, pelo que a juventude segue clamando no deserto e seu silêncio está cada vez mais barulhento.      
A realidade dos erros passados e a manutenção de meios e sistemas sem atualização não aparece claramente porque o país é mantido pequeno. Não é uma sociedade para todos.  Somente num ambiente de progresso econômico e demanda por mão de obra é que verdades virão à tona claramente. Como o país não costuma dedicar-se ao invisível; padece; não pensa a longo prazo. Se sinais são dados, são menosprezados e o país come com farofa o futuro, já de mau gosto, isto já não passa tão desapercebido como antes pelos jovens.   

Odilon Reinhardt. 3.11.2019.